sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Crónicas de uma caixa de supermercado

Este texto foi realizado no âmbito da discilpina de Redacção Jornalística, a intenção era fazer um artigo de Gonzo Journalism.


Ouve-se o toque das nove horas e a porta abre. Dezenas de clientes começam a entrar, empurrando-se, quase como um desafio para ver quem é o primeiro a entrar. Continuo a limpar a caixa registadora enquanto penso que mais parece uma corrida a mantimentos para a preparação a uma eventual catástrofe natural, quase como se a comida fosse acabar e eles tivessem que chegar primeiro que o seu próprio vizinho, ou o seu próprio irmão. Quase parece uma questão de vida ou morte. Mas a comida não vai acabar, não se vai dar nem um desastre nem qualquer tipo de acidente, trata-se apenas de um normal sábado num supermercado.

A crise, mal global que tanto nos tem afectado, ao que parece veio para ficar. Mas a questão das questões é: Serão todos afectados pela crise? E se sim, serão todos afectados de maneira igual? Conto com a experiência de trabalhar em supermercados para afirmar que já vi demasiadas coisas que me garantiram existir diversas diferenças financeiras e como essas diferenças levam as pessoas a actuar de certa forma em sociedade e em comunidade.

Entretanto, chega-me o primeiro cliente do dia à caixa enquanto os Escuteiros montam toda a parafernália explicativa sobre o Banco Alimentar. “Bom dia. É só o pãozinho e o queijo. Olhe que já estão cá a pedir outra vez, não podemos dar sempre, quem é que nos dá a nós? E sabemos lá nós se vai ser mesmo entregue a quem precisa!”. Vai, com certeza, ser a frase mais repetida do meu dia. A frase que me dá mais vómitos de tanto a ouvir, a frase que fica sempre bem e que desculpa o facto de, muitas vezes, não quererem simplesmente ajudar, e cumprir as suas funções sociais. Forço um sorriso, enquanto só me apetece dizer-lhe que pare de se desculpar à sociedade, e principalmente a mim, que sou apenas a porcaria de uma caixa de supermercado. “São 3,57€. Obrigada e tenha um bom dia!”, acabo por dizer enquanto faço o meu sorriso de “supermercado”, o mais cínico que pode existir.

Num instante começa a formar-se uma fila enorme, e penso que aqui não habita a crise. Pego no microfone para pedir ajuda a uma colega. Já ouço o reclamar de clientes que dizem que é ridículo estar apenas uma caixa aberta e que não estão para esperar tanto tempo. Os meus ouvidos estão já calejados de tanto descontentamento pré-fabricado e tenho resposta pronta caso algum idiota com a mania que é esperto resolva meter-se comigo. “Isto só se vê aqui, realmente, eu vou a outros supermercados e lá não é nada assim!”, reclama um. “Desculpe lá, mas eu vou a outros supermercados e também tenho que esperar. Caso não tenha reparado nós temos várias funções e como tal temos tarefas para além de estarmos sentadas nas caixas à espera de clientes de peito inchado e com a mania que são o Presidente da República.”, digo com a minha voz mais simpática e esboço o sorriso mais amarelo de sempre. Se há coisa que aprendi com este trabalho foi a usar e abusar do cinismo. O cliente fica pasmado e cala-se, corando, arrependido de ter aberto a boca. Quase que sou aplaudida por outros clientes, que me conhecem e dão razão.

Abrem-se mais duas caixas e os clientes dividem-se, então, pelas três caixas em funcionamento. Cada cliente, cada palavra de desagrado pelos preços, cada queixa sobre a qualidade de um produto duvidoso de marca branca. O que é certo é que levam os produtos na mesma, mesmo depois de milhentas reclamações. Há vários tipos de clientes: há os que têm poder económico e levam o que querem, quer precisem ou não, esbanjando dinheiro até mais não; há os que têm poder económico, mas são completos unhas-de-fome, e levam tudo do mais barato, e por vezes do mais reles que pode existir; há os sem poder económico que levam estritamente o necessário, cingindo-se à sua lista de compras; e há os sem poder económico, que vivem envergonhadíssimos por serem pobres, e preferem gastar uma imensidão de dinheiro em produtos ridiculamente caros a ter que admitir que têm problemas económicos e que quase precisam de ajuda.

Os Escuteiros vão falando às pessoas, muitas vezes em vão, e explicando em que consiste o Banco Alimentar, quase implorando por ajuda. Entretanto são entregues sacos próprios que se esperam que sejam retornados com a mínima ajuda possível. Apesar da crise são muitas as pessoas que aderem à campanha e que decidem ajudar. Também são muitas as que decidem não ligar importância alguma.

Levanto-me da caixa, depois do vendaval de clientes ter passado, e vou arrumar as dezenas de cestos e pequenos carrinhos deixados à balda pela loja. Dentro dos cestos, os clientes mais obtusos, vão deixando ficar os sacos do Banco Alimentar que, supostamente, aceitaram ao inicio, comprometendo-se a ajudar com um mero pacote de bolachas, massa ou farinha. Mete-me, sinceramente, nojo que pessoas adultas sejam incapazes de demonstrar a sua verdadeira posição em relação à ajuda social e sejam cínicas, em vez de admitirem desde logo que não querem participar na campanha.

As horas vão passando, e eu nem dou pela crise. O supermercado continua a encher. Cada cliente gasta em média quase 100€ nas compras que deveriam durar para todo o mês, mas cada semana vejo-os voltar e a gastar semelhante quantia. Continuo sem encontrar a crise. E penso que se podem gastar tamanha quantia por semana bem podiam também contribuir com um simples litro de leite, ou uma porcaria de um pacote de massa. Mas não, afinal de contas a sociedade é isto, é um conjunto de aparências ridículas, aparências que não se pretendem minimamente cumprir, é só “para inglês ver”.

19h30, a loja está quase a fechar, e vem aí uma enchente de clientes. Já é hábito, clientes com responsabilidades, trabalhos e filhos, que só podem vir no final do dia. E os outros, os detestáveis clientes que não fazem absolutamente nada e se lembram no fim do dia que têm que ir às compras, porque lhes falta uma porcaria de um pau de canela. Oh, como eu os adoro! Cambada de gente desocupada! “Boa noite. É só a canela?”, “É sim.” responde-me a mulher virando rapidamente a sua atenção para uma sua amiga que acabou de entrar. Começo a atender o próximo cliente e a mulher anterior nunca mais se despacha dali. “Olhe, desculpa, será que podia dar um jeitinho para este senhor?”. “Ai, desculpe! Estava tão distraída, nem me tinha apercebido.” Realmente não há melhor sítio para se conversar que a caixa de um supermercado! É precisa uma paciência do tamanho do mundo, para, educadamente, lidar com esta gente.

Oito horas. Finalmente fechou, penso logo! Mas ainda se encontram clientes na loja, e manda a boa educação que não os ponha na rua, ou seja, tenho que me submeter a que aquelas ignóbeis criaturas se decidam a despachar-se e a finalmente ir-se embora. Nova enchente nas caixas. Porque me parece outra regra de ouro dos supermercados, ou não há ninguém para atender ou os clientes decidem vir todos ao mesmo tempo pagar as suas compras, devia ser cientificamente provado. E continuo sem ver a crise.

Finalmente o fim do dia. Por hoje já não tenho que exibir mais o meu sorriso de supermercado. Então até amanhã à mesma hora. Sem a crise.

4 comentários:

  1. fiz questão de exagerar um pouco a realidade. vazia no sentido de não terem nada que fazer e passarem a vida no supermercado, ou outro sítio qualquer, a falar da vida dos outros com toda a gente que aparece. nem sequer olhando para a sua própria, ou reconhecendo que é rídicula e que precisam disto.

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  2. Percebo Raquel. De qualquer forma, todos nós, de uma maneira ou de outra, somos obrigados a ir ao supermercado de vez em quando. Gosto muito do texto, mas não dessa nota. Parece-me exagerada talvez porque algo fora do contexto.

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  3. Sim. Mas a intenção foi mesmo fazer o texto algo exagerado e malicioso. Obrigada, e estou sempre disposta a críticas :)

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